quinta-feira, 8 de outubro de 2015

A Faina: uma história social.

Joel Neto, A Faina



Mágoas e traições. Solidões. 
Dificuldades e tropeções. Trapalhões. 
Falta de talento e ambições. Escoriações.
Homem embriagado, ontem à noite, em Matos Cheirinhos, Abóbada.



Julgo termos já chegado aquela saborosa fase da nossa relação, em que nos podemos permitir coisas, como o não justificar a abordagem de um dado escritor, em vez de um outro qualquer. Além do mais, foi-nos pedido expressamente, na caixa de comentários, que voltássemos a Joel Neto. Pedido justo, legítimo. Contudo, não tivemos até ao momento qualquer oportunidade para desenterrar esse glorioso marco na história do jornalismo português. Nem sequer nos despertou qualquer sentimento de análise, o anunciando «regresso do grande romance aos Açores» (de onde, parece, o grande romance tinha partido, em busca de melhor vida). Hoje, porém, encontrámos, por mero acaso, uma melancólica reflexão sobre a faina, da autoria do aclamado autor insular. Como o leitor pode constatar, a crónica A Faina é uma bonita rememoração, quase Elegíaca, de um homem a braços com a sua culpa (embora também inclua cavalas e código morse, e uma senhora chamada Catarina, aparentemente, suada). Ora muito bem, eis, finalmente, um regresso a esse tema literário por excelência: a culpa, a melancólica e ocidental culpa, a culpa de não ter nada para fazer, enquanto se repuxa da minúscula cabeça o doloroso parágrafo, e enquanto os pescadores anónimos, ao longe, se preparam, alegadamente, para  pesca da cavala, espécie a que, hipoteticamente, fará mal o Outono; não sabemos, é uma ideia, apenas em tese, avançada no texto.

Joel Neto é um belo cultor da frase curta, não querendo arriscar as esquinas dos períodos mais longos, embora por vezes, a fazer fé no seu relato, procure ler morse, sem saber morse. O leitor pergunta-se: porque tenta alguém ler morse, sem saber morse? Talvez pela mesma razão que muitos se arriscam a serem escritores, sem saber escrever. Seria injusto, contudo, ficar pelo elogio da frase curta. Há nesta crónica uma panóplia de sentimentos contraditórios, desde o aguçar dos ouvidos para constatar o rumor da música pop e o marulhar das ondas, até à constatação fria, cruel, verdadeira, de que todos os Invernos morrem pescadores

A alusão às tempestades e aos pedidos de socorro imprimem no leitor um sentimento de perigo, em que logo vêm à imaginação os dolorosos naufrágios da costa portuguesa. Mas não se julgue que Joel Neto, lançando mão do sentimentalismo barato, ou à boleia do baixo jornalismo, que tão amiúde e corajosamente o nosso autor vitupera, procura tirar partido dos mais recentes e dramáticos episódios na costa portuguesa. Quando Joel Neto se refere às mulheres em casa rezando, é na paleta memorial da nação que vai molhar o seu pincel: velhinhas nazarenas ou poveiras, tão do apreço de poetas cantores como António Nobre, aparecem no carrossel de alusões de A Faina, e aí, Joel Neto, embalado pelo seu talento natural, arrisca o ritmo na sua prosa forte. O resultado de tão arriscado e profundo malabarismo, onde estão em jogo o próprio destino da arte da escrita e até a sorte de toda a zona económica exclusiva, é este bonito balançar da língua: Mágoas e traições. Solidões. Não resistimos a repetir a citação: Mágoas e traições. Solidões. O leitor que permaneça (ou fique) surdo com os encantos deste sonoro tambor, a ecoar por dentro dos miolos qual gongo chinês, pode não ter muitas certezas neste mundo, mas uma coisa podemos garantir: nunca entenderá a beleza da prosa da Joel Neto.

Além da beleza sonora, assalta-nos o provocador conteúdo da batida. Mágoas dos pescadores obrigados a deixar o seu lar, enquanto ele, Joel Neto, se senta confortável à lareira com os seus cães? E como sofre um homem comovido. Mágoas das mulheres rezando? Enquanto os seus maridos, companheiros e amantes vão para o mar arriscar a vida por uma cavala? E traições de quem? Dos que insensíveis à sorte dos homens do mar, continuam absortos nas suas vidas, incapazes de reconhecer um homem de talento como Joel Neto? E as solidões? Do mar, das varandas no Terceira-mar, dos píncaros onde vive solitário, o grande criador de parágrafos, obrigado a dominar as vagas de melancolia empurradas pelos furiosos ventos de uma sensibilidade incomparável? São perguntas com que o leitor se debate, no meio de uma profunda dor moral e de um indisfarçável prazer artístico.

Mas Joel Neto não se perturba com o sucesso da sua arte, e muito menos se deixa salpicar com a lama das emoções fáceis. No recato da sua profunda serenidade, não comenta as traições, as mágoas, ou as solidões. Refere, condoído e triste, o regresso da sua companheira de viagem (não sabemos se esposa, filha ou amante) a suada Catarina, após o justo exercício do ginásio. E aí, caros leitores, o escritor Joel Neto, esmagado pelas lutas interiores a que se entregou na varanda do bar, moído por uma inteligência capaz de comover-se com a sorte de homens infelizes, meros joguetes nas mãos do tresloucado mundo (Ouvirão esta música? Decifrarão as luzes do hotel? Que histórias contarão entre si? Que libertação, que desespero experimentarão a bordo daquele barquinho que uma onda poderia virar?) aí, o escritor Joel Neto, mortificado pela consciência de que vai em busca da lareira, dos cães e do sossego do seu lar, aí o escritor vibrante, pois sente a bondade e o conforto da cena campestre que está prestes a protagonizar, fazendo crepitar a lenha, rodeado de cães e das recordações do seu terrível e belo entardecer na varanda sobre o mar, aí, meus estimados leitores, o verdadeiro escritor não poderia nunca deixar de fazer essa dolorosa e derradeira pergunta: haverá cavala amanhã?

Não se julgue que falhamos aqui o significado profundo desta ironia. Não, Joel Neto não é desses arcádicos ocupado com jogos e flores. Joel Neto não nos atiraria com dúvidas sobre a cavala, se com o peixe não viessem também tesouros de sensibilidade. Joel Neto, ao perguntar pela cavala, insulta o desprezível modo de vida burguês, preocupado com a escassez da cavala e as virtudes do ômega 3, e desse modo, espeta no coração desta sociedade, falha de valores e de homens sensíveis, o verdadeiro aríete da revolta social, a palavra poética. Mesmo que a capitanear essa revolta social, venha uma pergunta acerca da comparência, na manhã seguinte, de uma cavala assada no forno. Qual Victor Hugo do Terceira-Mar (um product placement, que esperamos não envolva contrapartidas) Joel Neto obriga o leitor a terminar o seu texto, não o deixando partir sem lhe desferir uma vergastada no coração. 

Caríssimos leitores, poderão rir à vontade, se for esse o vosso desejo, mas a verdade é que, amanhã, ao almoçar, saberão como cada cavala despejada no vosso prato, implica o trabalho e o risco de vida de cada um dos pescadores que andou na dura faina. Saberão que foi preciso Mágoas e traições. Solidões. para que essa cavala possa agora jazer no prato entre salsa e batatinhas. Por isso, Joel Neto faz questão de nos lembrar: por cada conjunto de pescadores que arrisca o coiro, há um gajo numa esplanada a coçar a micose, enquanto espera pela Catarina, ainda suada. Quem paga estes vagares? Não sei, nem me diz respeito. Poderá esse gajo, habituado a coçar a micose na esplanada, ter hipóteses de vir a escrever algo capaz de agradar a este crítico? Não sei, mas desconfio que não tenha jeito para a faina.