quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Agora não posso!

Em breve apresentaremos aqui os explosivos resultados do primeiro Campeonato Mundial de Tradução de Sonetos de Shakespeare para Português no qual participam a ilustre mas algo envelhecida equipa formada por Vasco Graça Moura mais o meio caquético-académico-editorial-político-cultural (2308 toneladas), que defronta a solitária mas temível equipa formada por alf (74 kg) mais o Tradutor Automático do Google (quase peso nenhum).
 
 

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Suporta o génio sem gemidos e com o máximo de tranquilidade que te for possível, pois está tudo bem, disse-me ontem à noite Fernando António Nogueira Pessoa.

Esqueçam tudo o que disse sobre o João Mário Silva e a sociologia da crítica literária, sobre as consequências culturais da ausência de competição dos jornais e a escassa exigência da crítica, sobre as dificuldades de contruir um sistema onde a valorização do livro dependa de critérios estéticos consolidados pelo debate, sobre a importância da assimilação de todos os critérios de valorização da escrita ao longo da história, sobre a medição das relações entre competição literária e a evolução da linguagem como tecnologia e suas valências adaptativas na sobrevivência humana: a verdade, a crua e nua verdade, é que amanhã o pobre, e nunca, desde hoje em diante, suficientemente elogiado, João Mário Silva vai a Londres para ter (e esta expressão é dele) o privilégio de entrevistar a Hilary Mantel, pessoa representada na imagem aduzida, agarrando, cruz credo, o tenebroso livro, muito justamente intitulado  Bring Up The Bodies: pessoa com quem eu, por razões literárias, religiosas, políticas e zoológicas, não desejo de modo algum conviver e muito menos entrevistar, nem que me fosse oferecida em troca a imortalidade literária em todas as galáxias do universo.
 
 

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

É preciso aprender com estes gajos, ou seja, as pessoas em geral. O quê? Não sei.

Para ser justo, pois não tenho ainda o dom de viajar no tempo, embora pouco falte, não vi ainda a nova peça de José Tolentino Mendonça, simplesmente porque não estreou; apenas folheei o texto editado pela Assírio e Alvim e pareceu-me, é claro, mais do mesmo: falta de sentido do que é a linguagem dramática, falta de sentido do espectáculo - o que é de estranhar num padre - falta de sentido da tragédia em que nos meteram - o que não é de estranhar num padre, uma vez que vivem numa redoma de adulação e conforto - falta de sentido da nossa própria irrelevância, falta de sentido das gajas boas, falta de sentido da beleza viril, falta de sentido da humilhação constante que é ter de viver da literatura, meu caro Fernando Pessoa. Lá está, outra das razões porque escrevo textos longos; estou positivamente pouco preocupado com considerações estético-políticas, concentrando-me essencialmente, e por agora, na tentativa de pensar logicamente o que estou a dizer. Quem quer literatura (o que quer que isso seja) ou quem quiser cuspir-me no túmulo, terá que procurar-me noutro lugar. Paciência, que já faltou mais. 
 
 
Quero apenas dizer que depois de um comentário do Tolan, estou cada vez mais convencido de que se queremos escrever coisas profundas, é preciso, por força, que exista em nós um Jorge Jesus humilhado, de cabelo ralo de velhice, mas acinzentado de ilusão contra a velhice, um Jorge Jesus capaz de arrancar a pastilha ao mandibular nervosismo, segurá-la bem cerrada como um tesouro, no interior do punho, gritando com ferocidade e convicção a um jogador relapso um bem sonoro: vai para o caralho, enquanto pensa sobre as dificuldades de fazer concordar o género com a declinação verbal. Em linguagem dos gajos dos livros, isto quer dizer que não basta a técnica, a experiência, o conhecimento teórico e prático do mundo, o desejo de vitória e de comunicação, é preciso também alguma consciência do ridículo, mas sempre num contexto de loucura quanto baste para continuar a expressar ideias num mundo que sabemos absurdo e impiedoso. Reparem por exemplo como se pode dizer, este teatro é uma merda, mas com grande elegância, pensando que se está a dizer uma outra coisa completamente diferente, e apenas porque não se escreveram textos longos, previamente, a clarificar a estrutura do próprio raciocínio, para mais tarde se poder desenhar em dez ou quinze linhas um bom e consciente exercício crítico. Para se controlar a interpretação e atingir a perfeição do estilo, sintético e sem redundâncias, é preciso exercitar e este blogue é um ginásio. Chama-se a isto acreditar no trabalho e na crítica pública. Adiante. Em O sentido do trilho escreve José Mário Silva: 
 
Em O Estado do Bosque, a nova peça que poderá ser vista na Cornucópia entre 7 e 24 de Fevereiro, com encenação de Luís Miguel Cintra, há também uma personagem descrente do discurso que a engendra: «Sinto que o teatro acabou.» Mais do que autoconsciência pós-moderna, trata-se aqui de honestidade intelectual. Porque este texto só é teatro no sentido em que foi escrito em cenas, com diálogos, para ser dito por actores. Se há nele uma força dramática, essa força não tem centro, nem objecto. É uma névoa de palavras, uma imanência. Não há propriamente um enredo, uma história, antes um desígnio metafísico que se materializa, elíptico e fugidio, através das subtilezas da linguagem poética de Tolentino Mendonça.
 
O sublinhado é nosso e assinala que não havendo nada (nem enredo, nem história, nem força, nem centro, nem objecto) então para haver verdade e magia (ou se quisermos, desígnio metafísico), falta Jorge Jesus, tanto na peça como no texto crítico. Por exemplo:
 
O melhor de O Estado do Bosque são mesmo os momentos de poesia em estado puro: «Rosas espalhadas pela neve. Chega até mim o seu perfume. As pétalas são como brasas no gelo. Não sei explicar, mas tudo ganha uma beleza que antes não tinha.»
 
Não são nada, as pétalas não são como brasas no gelo, porque segundo as leis da física, nem as pétalas das rosas são incandescentes, mas baças como veludo, nem as brasas estabilizam sobre o gelo como as rosas sobre a neve. A redundância analógica entre gelo e neve é tão infantil que desespera qualquer leitor minimamente crítico. Além disso, quando se lançam brasas sobre o gelo, ou as brasas se transformam em pedrinhas negras, ou o gelo derrete, ou ambas as coisas, acabando as brasas por desaparecer, modificadas e feridas de toda a beleza; perdem vida e parecem mirrar, enegrecer, afundar-se na superfície gelada, causalidade que me sugere muito mais as consequências não intencionais da política fiscal do que o perfume das rosas. Confundir variações cromáticas sobre o estados dos objectos, com a expressão intelegível de ideias e sentimentos pessoais codificados a partir dos objectos, é uma das muitas e muito habituais confusões estéticas sobre o sentido da poesia. É tudo o que  por agora podemos dizer. Deixo-vos com uma pequena ilustração de  um excerto de um comentador à crítica da peça O Estado do Bosque - a salvação da blogosfera são os comentadores -, a quem gostariamos de ler no Expresso, em vez do José Mário Silva, mas como diria Ruy Belo, «eu vinha para a vida e deram-me dias», que é como quem diz, eu vinha para a crítica e sairam-me burros ao caminho.
 
  
Caro, José Mário Silva,
 
para Tolentino Mendonça o teatro acabou, simplesmente porque não o sabe escrever. Porque é que essa coisa do pós-modernismo tem de servir de desculpa àqueles cujas capacidades, ou predisposições estéticas, não possuem a força ou a vontade suficiente para cumprir os designios propostos por Aristóteles há mais de dois mil anos, mas cuja validade deveria, ainda hoje, manter-se?
Ricardo Régua, comentador do blogue Bibliotecário de Babel.
 
 

Retaliação em forma de elogio.

Se há coisa que se aprende no convívio com os outros é a violência. Sabemos que é um lugar comum assinalar a maior sensibilidade às críticas e o desprezo injusto pelos elogios. Podemos escrever mil páginas de conselhos técnicos sobre como escrever: maldizer os advérbios, a utilização de adversativas, a disposição gráfica, a arquitectura formal das orações, a subordinação à forma, a subordinação ao conteúdo, o abuso dos traços, a inconsistência das vírgulas. Pode ser o estilo, a economia de espaço, a travagem da personalidade, o domínio dos instintos, o rigor do argumento e a escassez de conhecimentos químicos essenciais para misturar dois significados opostos, e obter uma solução purificada que ilumine as imagens previamente esculpidas na mente do leitor. Pode ser ainda toda a tecnologia da atenção e da necessidade que há em captar os outros para o nosso círculo perverso e pervertido. É sempre comovente estar diante daqueles que tal como as crianças mantêm a sua fé no controlo das intenções.
 
 
Nada disso importa. Demoramos milénios a assimilar boas teorias porque as teorias são uma declaração de guerra ao corpo e nós, estranhamente, somos um novelo de circuitos desenvolvido numa estrutura mecânica; um padrão irregular composto por unidades de fronteiras muito instáveis; um acontencimento bizarro que se esforça por provar a existência. Nem sequer chegamos a assimilar as teorias que a seu tempo desarranjam e refazem o sentido da ordem, tal como os círculos de Dante ou a evolução de Darwin. Isto para dizer que o nosso ponto de vista é totalmente indiferente para o que formos depois das coisas terem sido, pois na verdade, as coisas continuarão a ser depois de nós. Suspeito que a única santidade é a que depende de um equilíbrio ascético, feito de muitas humilhações e da contemplação precisa e rigorosa dessas humilhações; de quem fala mantendo intacta a sua clarividência mas já separado de toda a economia da atenção. As coisas todas continuarão a ser e escaparão ao vosso juízo, tal como escaparão às minhas pobres intenções. Há todas as razões para ter calma porque só temos responsabilidade sobre o movimento e não sobre aquilo que permanece. Está tudo bem com toda a gente, desta ou de outra maneira qualquer.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Não raras as vezes, a ignorância é uma benção.


Eu não sabia quem era a Mathew Herbert Big Band até ao momento em que os músicos apareceram em palco. Pese embora ter comprado o bilhete duas semanas antes, nem espreitadela no google nem uma vista de olhos no youtube. E ainda bem.
 
A Mathew Herbert Big Band é um estrondo ao vivo e por comparação, qualquer gravação soa a restos de anteontem mal aquecidos no micro-ondas, engolidos com a TVI em pano de fundo.

O bip-bip que está sempre presente na música é o som da máquina que manteve vivo o filho do Sr. Herbert durante as primeiras semanas de vida. E cada bip representa uma centena das milhares de pessoas mortas no Iraque entre 2003 e 2006.

Story of my life, em repeat


domingo, 27 de janeiro de 2013

Esta atenciosa resposta à Bárbara Rosa vai mesmo sem imagens que é para verem como somos austeros.

1.
Chove com intensidade, e na diagonal, num Domingo melancólico e sombrio. O pior que me podia acontecer acaba mesmo de acontecer, isto é, ser obrigado largar a excelente companhia do Engenheiro Álvaro de Campos para acrescentar algumas notas ao debate público aqui iniciado pela atenciosa Bárbara Rosa e o paciente ngonçalves, sobretudo no que toca a um dos temas que vai lentamente e com toda a justiça tornando famoso este blogue, a saber, uma crítica geral do sucesso infundado das pessoas (em geral) que na nossa ditosa República beneficiam de um retorno social, cultural quando não monetário, totalmente desadequado relativamente aos méritos do seu trabalho, e isto por explorarem as fragilidades e os consensos bovinos típicos de sociedades tardiamente alfabetizadas, pouco civilizadas e que, por isso, não gostam de livros. Significa este introitus, como é bom de ver, que nós também somos controleiros. Mas somos controleiros dos controleiros - o que nos confere 100 anos de perdão - controleiros, repito, sobretudo dos que pretendem enriquecer com a actividade controleira, ainda por cima não respeitando o código deontológico do controleiro que diz na alínea a) do artº 1: não controlarás se não fores muito melhor controlador que o indivíduo ou problema que pretendes controlar.
 

2.
Depois da metodologia da razão ter sofrido o bombardeamento metódico e apaixonado de um Kant e de um Rosseau, e pronto, vá lá, de um Rawls, coitadinho, eu julgava que as dificuldades políticas contemporâneas dependiam, nas palavras do inesquecível e sempre sábio Herbert Simon, da nossa capacidade de representar correctamente um dado problema. Ou seja, no caso da despesa pública, eu pensava ingenuamente que a dificuldade dependia dos erros conceptuais na análise do ciclo de negócios e da incapacidade de perspectivar a eficiência económica como alocação do esforço no tempo, sendo o mecanismo de decisão (e o seu suporte em estruturas de representação gerais dos problemas) a grande dificuldade a ultrapassar, precisamente porque os governos e os parlamentos deixaram de conseguir expressar a complexidade dos movimentos económicos e a diversidade dos pontos de vista, o que originou dificuldades crescentes para harmonizar o sistema legislativo de base  democrática - antes operado por uma Assembleia e um governo eleitos segundo um cálculo numérico - com as diferentes vagas do sentimento público (formado pela relatividade da posição individual) e as suas alterações no que diz respeito ao que é justo, ou legítimo, em face do movimento típico de qualquer sociedade que não a dos defuntos, e mesmo esses decompõem-se e oferecem problemas de decisão aos administradores dos cemitérios.
 
 
3.
Mas não, afinal o problema resume-se ao desconhecimento generalizado da administração pública desse tesouro contemporâneo que é o regime geral de Classificação económica da(s) despesa(s) pública(s) constante do anexo III ao Decreto-Lei n.º 26/2002, de 14 de Fevereiro, que aprova o regime jurídico dos códigos de classificação económica das receitas e despesas públicas. É extraordináriamente extraodinário que o blogue má despesa pública apresente sugestões para simplificar o Orçamento de Estado (um documento de uma complexidade de milhões e milhões de euros, distribuídos por coisas tão díspares como comprar arrastadeiras para velhinhas, remunerar consultores económicos da Goldman Sachs e adquirir helicópteros cor-de-laranja) querendo tornar a informação relevante acessível ao público (com recomendações de resumos para crianças a efectuar com baixo custo) mas apenas consiga responder aos nossos pedidos de clarificação do critério do que é uma má despesa pública invocando o anexo III do Decreto-Lei n.º 26/2002, de 14 de Fevereiro  sem que a excelentíssima representante do má despesa pública (espero que eleita legitimamente pelos seus pares) se tenha sequer dignado a fornecer um link para o conteúdo da inestimável peça legislativa. Tentemos manter a calma.

 
4.
Uma vez mais, o que irrita no má despesa pública, como já aqui expliquei, e sou obrigado a recordar, é o cabal desconhecimento do sistema político e económico que pretendem corrigir (uma vez que a Bárbara Rosa parece não ter tido a paciência de ler com atenção o que foi dito aqui mais abaixo, e que obrigou o ngonçalves - com o poder de síntese típico dos bons engenheiros - a fazer um resumo Europa-América sobre a falácia incorporada, mesmo que com base legal, na mera denúncia da despesa) não reunindo qualquer dos membros da prestigiada equipa do má despesa pública a tranquilidade necessária para perceber que o problema implícito no seu critério de má despesa nasce, precisamente, da contumaz prevaricação dos agentes públicos em relação a um dado regime legal, o que levanta problemas que invalidam o próprio conceito de má despesa do blogue má despesa pública. As diferentes  interpretações de um regime legal na decisão económica, bem como o seu enquadramento numa teoria da agência, são dos mais complexos problemas das sociedades contemporâneas onde a monetarização das relações sociais tornou muito complexas as relações de autoridade, como já aqui escrevi. Acenar simplesmente com um Decreto Lei é ignorar a diversidade de interpretações jurídicas dessa peça legislativa e do que é ou não é uma despesa legitimamente efectuada, o que abre autênticos labírintos processuais dignos dos piores pesadelos de Kafka. Basta pensar na corrupção - que como sabemos se prende com a má despesa pública -, na prostituição - que como sabemos se prende com o coiso e tal -, ou em coisas como o abandono de cães, os assobios a Oscar Cardozo ou qualquer actividade cuja equivalência entre contornos morais e enquadramento jurídico seja muito difícil de conseguir devido aos contornos nebulosos e moralmente polissémicos dos actos praticados pelas pessoas diante dos obectos do desejo, e à cabeça de todos, voilá, o transportador (no tempo) de todos os desejos, i.e., o  dinheiro, a guita, o carcanhol, o pilim, a massa. 
 
 
5.
Perante o problema de uma má despesa pública, estabelecida a  partir de um critério legal, podemos agir: a) transformando o regime legal - e o má despesa não explica se mudando o anexo III ou alterando o enquadramento jurídico da perseguição judicial contra os prevaricadores do anexo III - ou mantendo o regime legal e aumentando não só a perseguição jucicial como a investigação policial, o que poderá passar por transformar cada cidadão num agente de policiamento, o que me parece ser a via inconscientemente preconizada pelo má despesa pública e que cheirando-nos a socialismo soviético patrocinado pela Ford e a MEO-PT, surge diante dos nossos olhos como um dos mais monstruosos efeitos da desorientação teórica reinante. Poderão obstar que existem coisas mais graves. Sim, é verdade, existem. No entanto, como leitor do Novo Testamento, se há tipo de indivíduo que me dá vontade de agarrar no chicote, mais do que o pecador, a prostituta, o publicano, o ladrão, ou o político e administrador que gasta mal o dinheiro, é precisamente o hipócrita.

 
6.
Devo neste momento confessar a minha surpresa perante a estranha relação que aparentemente as pessoas do má despesa pública mantêm com a legalidade, ou seja, julgando insuficientes para o combate à má despesa pública, os intrumentos legais e administrativos do sistema democrático - de tal forma que se julgam responsáveis pelas mãos que eventualmente (e legalmente presumo) venham a utilizar os dinheiros públicos -, recorrem precisamente aos instrumentos legais do sistema democrático para definir o que é a má e a boa despesa pública. Não haverá aqui uma inconsistência?Como eu gosto imenso de trabalhar - o que me afastou da engenharia e me precipitou num mundo onde as Bárbaras Rosas são consideravelmente feias e por isso nos oferecem fortes incentivos para nos suicidarmos metodologicamene, o que é mesmo que dizer que somos forçados nas ciências sociais a endurecer o músculo que regula a paciência, aprendendo a nadar num mar repleto de armadilhas, ondulação violenta, correntes contraditórias, cadáveres teóricos, restos de armaduras morais, tubarões sanguinários e muito peixe miúdo - não nos resta senão analisar as coisas com longa e honesto estudo misturado, nas eloquentes palavras de Luís de Camões.

 
7.
Todo o enquadramento legislativo da receita e despesa pública baseia-se alegadamente na observância dos princípios gerais da contabilidade pública, e as recentes correcções parece que têm dependido em primeiro lugar das prioridades da política económica e social (risos) o que levou à alteração do antigo regime jurídico; e só isto seria já suficiente para arregaçar as mangas e tentar colocar o problema de outra forma. Não vou sequer debater aqui o facto do anexo III, do Decreto Lei (página 21 no link acima indicado) ao pretender enquadrar juridicamente a receita e a despesa, ignorar olimpicamente problemas triviais da ciência económica e ser por isso totalmente ridículo no seu alcance político. Por agora fico apenas pela própria natureza falaciosa da transparência de princípios, na verdade, totalmente opacos, como são as classificações da despesa e a própria desconfiança sistemática do público perante o administrador. Claro que esta calvalgada moderna contra o Estado (do qual me reconheço moderado participante) leva a que muitas vezes se caia no erro contrário: uma diabolização da autoridade que leva ao controlo paralizante, e que ao nada controlar, permite precisamente o descontrolo estrutural. O parolismo reinante aqui já registado, leva a que se adopte por critério de civilização tudo o que se aproxima do estrangeiro (mesmo que os estrangeiros se estejam a enfiar por um mar de silvas conceptuais, náo importa) recorrendo à transparência como antes se recorria aos dons do espírito santo. Problemas de agência? A transparência há-de fazê-los desaparecer, se deus quiser.
 

8. Vejamos de mas parto o conteúdo do Anexo III. As acutalizações de classificação parece que foram pressionadas por novas necessidades de contabilização de operações como a locação financeira (ai), a utilizãção de infra-estruturas de transporte (oi) e operações de tesouraria (ui) e ninguém pode assegurar que em breve não se irá adequar a despesa pública também os autocarros utilizados ao serviço da CGTP, os almoços de Natal da Câmara de Oeiras ou as idas ao circo das crianças no quadro da EDP. Na verdade, o critério do Anexo III arranca desta forma fulgurante:

A unidade institucinal identifica-se com o agente económico que no exercício da sua actividade principal tem uma contabilidade completa e, simultâneamente, dispõe de capacidade jurídica para decidir da afectação dos seus recursos correntes, de capital e financeiros, isto é, que pode considerar-se como um centro de decisão económica (p. 22) sendo que do ponto 01.02.01 a 01.02.13 da classificação da despesa pública se referem gratificações variáveis ou eventuais, abono para falhas, colaboração técnica e especializada, formação e outras coisas que apesar de fixas na Lei requerem um batalhão de controleiros para a sua estrita vigilância. E que dizer dos sub-agrupamentos aquisição de bens e aquisição de serviços, incluindo munições, explosões e artíficios - o meu preferido - ou os famigerados produtos vendidos nas farmácias no contexto SNS, que devem perfazer uns milhões de idas ao circo pelas crianças da EDP ou ainda os prémios, condecorações e ofertas? Acham mesmo os membro do má despesa pública que o Anexo III resolve o problema? Acham mesmo os membro do má despesa pública que os autarcas e ministros não sabem de cor estas merdas, uma vez que são eles que congeminam estas merdas juntamente com os escritórios de advogados especializados em direito administrativo? Acham mesmo os membro do má despesa pública que andamos todos a dormir em Portugal e que só eles podem divertir-se à grande a ganhar dinheiro à custa da miséria pública? Pois nós somos mais poupados, e encontramos divertimentos totalmente gratuitos, quer para o sector público, quer para o sector privado. Isto leva-nos directamente até ao fim desta nossa desagradável viagem, parando numa última estação: diagnóstico da situação e sugestões.
 
 
9.
Diagnóstico da situação e sugestões aos caríssimos membros do má despesa pública, isto se me for permitido, claro.
 
É curioso como a desconfiança perante a iniciativa privada é sistematicamente associada à paralização da economia mas não ocorre a ninguém que a desconfiança sistemática perante a administração pública e a forma como gasta o dinheiro leva a uma paralização das operações financeiras públicas - tal como aqui referia o ngonçalves no seu exemplo -, cujo reverso da medalha é precisamente o descontrolo orçamental, o que nos leva a denunciar que ou muito nos enganamos (e espero que nos possam desmonstrar que estamos redondamente engandos) ou a acção do má despesa pública agrava precisamente o problema que pretende combater, circularidade intencional que é, aliás, típica dos problemas político-sociais, um mecanismo há muito identificado por velhinhos como Karl Popper; se querem salvar o sistema representativo, caros autores do má despesa pública, consumam as vossas energias a desenhar uma forma de acentuar a ligação entre os interesses públicos e os interesses do público, e não confundindo os interesses do público com o financiamento privado da denúncia da má despesa pública; contribuam para aumentat a correspondência entre eleitos e eleitores - apresentando as vossas propostas para resolver o problema da má despesa pública (não as encontrei no vosso blogue, peço desculpa); elaborem propostas de transformação da lei eleitoral, ou de redução do número de funções públicas em geral, e sobretudo pensem na redução das que são financiadas por impostos. Se isto vos dá muito trabalho, leiam bons livros e pensem nas coisas, venham aqui comentar literatura, montem um negócio privado e defendam-no o melhor que vos for possível, pois nesse momento estarão, garanto-vos, a contribuir de forma muito mais cabal e consistente para acabar com a má despesa pública.
 
 
atenciosamente
alf

sábado, 26 de janeiro de 2013

Era tão bom quando isto era semi-anónimo e um tipo não tinha que se preocupar em ser corrigido porque ninguém nos ligava peva

"Bárbara Rosa disse...

Se, realmente, tinha interesse em saber qual a qualificação de má despesa por parte dos autores do blog Má Despesa Pública bastava ter procurado a respectiva informação na página do facebook do blog ou no livro, ambos com o nome homónimo do blog. E para lhe poupar o trabalho que parece não querer ter, até lhe deixo aqui a informação disponível" 

 
O resto continua nos comentários mais abaixo. Mea culpa, e sim é verdade que não gosto de trabalhar embora tenha lido os primeiros posts do blog e o perfil dos autores, que é onde as declarações de princípio costumam estar. Mas não estavam.

Adiante, a discussão sobre a despesa pública resume-se em duas frases. Um grupo acha que o Estado não deve gastar  nem um chavo seja no que for. O outro argumenta que sem a teta pública o país colapsa. Ambos falham o alvo já que nenhum se dá ao trabalho de definir prioridades para o dinheiro dos impostos.  Porque pura e simplesmente a legalidade da despesa não serve de qualificador moral. A única coisa produzida por iniciativas como a vossa é o aumento exponencial da quantidade de controleiros necessários para passar à lupa os petroleiros de justificativos necessários porque se gastaram três tostões num litro de vinho.  Eu passei 6 anos numa instituição pública com um orçamento anual de 150 milhões. A dada altura as regras ficaram tão estúpidas que eu me vi obrigado a pagar do meu bolso despesas porque não é exequivel apresentar 3 orçamentos antes de comprar 36 euros (sim, repita comigo, trinta-e-seis-euros) de despesas.

O Inverno não trouxe apenas a neve.


 
Ontem fui um entre as três centenas de humanos que foram abençoados com a Orquestra Filarmónica de Bruxelas a tocar Shostakovich, Gershwin e Stravinski. Passadas que estão doze horas desde o fim do evento, ainda estou a remoer a maravilha que foi o concerto. Dentro de sete horas, retorno para saber o que é que o Mathew Herbert e a sua Big Band têm para me dizer.

À atenção do Má Despesa Pública, terminando com um reparo.


A despesa será boa ou má? 

Convinha o blogue da má despesa pública esclarecer o que é a má despesa. Por agora, o critério parece ser: toda e qualquer despesa feita pelos cabrões dos políticos e outros filhos da puta que caíram na mira do vosso ressabiamento. É um critério, lá isso é, mas um bocado para o fraquinho.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Estamos mais fracos.

Somos químicos, ou seja, caçadores: «as duas experiências da vida adulta» de que falava Pavese são nossas, o êxito e o fracasso, matar a baleia branca ou quebrar o navio. Não devemos render-nos à matéria incompreensível, não devemos ficar sentados. Estamos aqui para isto, para errar e para nos corrigirmos, para dar e receber pancadas.
Primo Levi, O Sistema Periódico.



We can rightly judge a society by how it treats its eccentrics and deviant geniuses—and by that measure, we have utterly failed. (...)Like Henry David Thoreau, (Aaon Swartz) chased his own dreams, and he was willing to disobey laws he considered unjust. (...) Swartz thought information should be free. It wasn’t a major coup, but it counts as a defiant act—and one that made its point, for it was, and remains, absurdly hard for the public to gain access to what academics supposedly write for it. (...) Today, prosecutors feel they have license to treat leakers of information like crime lords or terrorists. In an age when our frontiers are digital, the criminal system threatens something intangible but incredibly valuable. It threatens youthful vigor, difference in outlook, the freedom to break some rules and not be condemned or ruined for the rest of your life. Swartz was a passionate eccentric who could have been one of the great innovators and creators of our future. Now we will never know.



Na trágica morte de Aaron Swartz - entre esta vergonhosa demonstração de cobardia política e ressentimento filisteu, e esta excelente abordagem ao problema fundamental do nosso tempo - convém recordar que o que aqui me mantém comprometido com o que muitos continuam a julgar um desperdício do meu precioso tempo, antes da extinção final e irredutível, é não só o adestramento das minhas capacidades de combate, expressão, aprendizagem, comunicação, sofrimento, alegria, como a investigação de uma provável harmonização dos meios de comunicação com a invenção de uma nova organização política. 
 
 
Se há combate ainda justo sobre as ruínas da democracia ocidental é precisamente o que nos une contra os burros dos jornalistas objectivos que são em primeira instância os mais perniciosos aliados da falácia representativa. Não há liberdade de expressão sem meios de comunicação manipuláveis a baixo custo, com acesso diversificado e o reforço de regras de competição que obriguem constantemente a refazer as posições dos jogadores e os resultados do próprio jogo.



When our country was founded, newspapers were not neutral, non-partisan outlets, but the products of particular political parties. The Whigs had their paper, the Tories theirs, and both of which attacked their political opponents with slurs that would make even the most foul-mouthed bloggers blush. This behavior wasn’t just permitted — it was encouraged.

In 1794, newspapers made up 70% of post office traffic and the big debate in Congress was not over whether the government should pay for their delivery, but how much of it to pay for. James Madison attacked the idea that newspaper publishers should have to pay even a token fee to get the government to deliver their publications, calling it “an insidious forerunner of something worse.” By 1832, newspaper traffic had risen to make up 90% of all mail.

The entire foundation of press criticism was rebuilt. Now, instead of criticizing papers for the bias of their owners, press critics had to focus on the professional obligations of their writers. Bias wasn’t about the slant of a paper’s focus, but about any slanting put in by a reporter. So that was the line of attack the house press critics took when the world of weblogs brought back the vibrant political debates of our country’s founding. “These guys are biased! Irresponsible! They get their facts wrong! They’re unprofessional!” they squeal. Look, guys. Tell that to James Madison.

Aaron Swartz no seu excelente The Invention of Objectivity.

Reposição das coisas todas em geral.

A nossa estatura moral, psicológica, atlética, obriga-nos a uma consistência demonstrada, actualizada, praticada com judaica persistência e vimos por isso retirar as acusações feitas neste último post (mas não as outras, expostas anteriormente com clareza e que são absolutamente procedentes além de consistentes com a literatura científica da especialidade) em relação à falta de pudor intelectual e ausência de vergonha cívica do blogue má despesa pública. Não sabemos se por epifania da consciência, se por efeito dos misteriosos e sagrados poderes retóricos da lógica do medo (Sócrates é um ateniense, todos nós gostariamos de ser atenienses, logo, todos nós gostaríamos de bater em José Sócrates) mas a verdade é que o blogue má despesa pública decidiu publicar finalmente o meu comentário - excerto do post aqui publicado -, repondo a justiça e a caridade entre irmãos perocupados com «as mãos por onde passa o país»; restabelecendo o diálogo entre pessoas de bem, e reacendendo a luz da esperança num futuro onde o tigre, o leão e todos os cordeiros possam finalmente pastar em paz.

Há quem lhe chame vigarice intelectual, oportunismo, falta de vergonha, despudorada falácia, fuga para a frente, demagogia: quanto a mim, julgo que é apenas falta de exposição suficiente diante das obras completas de William Shakespeare.

Entendemos a cidadania como o estatuto jurídico do cidadão do qual emanam direitos e deveres e que se traduz na faculdade de participar na vida colectiva do Estado. Consideramos que a vida do Estado é a nossa vida porque vivemos dentro dela e, por isso, somos todos responsáveis pelo rumo do país. Pretendemos contribuir para combater a resignação, a passividade e o sentimento de impotência que nos preenche, enquanto portugueses, face às más opções que o país assumiu nas várias "mãos" pelas quais passou.
 
Conjunto de frases cómico-trágico aparentemente confundido pelos autores do má despesa pública com uma sucessão de pressupostos logicamente organizados em que alegadamente «somos todos responsáveis pelo rumo do país» mas mantendo um «sentimento de impotência que nos preenche, enquanto portugueses, face às más opções que o país assumiu nas várias "mãos" pelas quais passou» o que me deixa confundindo sobre a saúde psicológica de pessoas que sendo responsáveis pelo país se sentem eventualmente impotentes pelas más opções assumidas pelas várias mãos pelas quais o país passou e pretendem agora disciplinar com a cabeça as más opçoes das futuras mãos que queiram vir a passar futuramente pelo país.
 
 
Por volta das 13 horas e 34 minutos do dia de ontem foi libertada no blogue má despesa pública uma contra argumentação ao pressuposto ideológico no qual estão encavalitados os valorosos denunciadores da má despesa pública. Logicamente, o comentário não foi aprovado, ainda que no referido blogue se refiram os direitos dos cidadãos e se apele à qualidade da vida do Estado que aparentemente é a nossa vida porque vivemos dentro dela (frase esfíngica que é bem capaz de me tirar hoje o sono). Note-se que a minha contra-argumentação não continha um único insulto, muito menos recursos vernaculares e fazia até menção a reputadas autoridades académicas nos vários domínios onde alegadamente o má despesa pública se funda como observatório da má despesa pública. Denunciar a má despesa pública é um acto valoroso, litúrgico, nobre, revolucionário, progressista, purificador. Já pensar durante três segundos sobre a irrelevância dos protestos morais perante a grotesca falácia do mecanismo democrático e o ridículo conceito de transparência, carece de um esforço que parece estar para lá da missão denunciante  e dos objectivos comerciais do má despesa pública. Lamento, inclinando silenciosamente a minha cabeça durante um minuto a fim de celebrar as exéquias pelo pudor intelectual e pela ausência de vergonha cívica dos membros do má despesa pública, desejando muitas felicidades aos representantes cívicos da Ford e da MEO-PT e seguindo tranquilo o meu caminho solitário.

Lance Armstrong por Ex-Vincent Poursan.

Lembro a primeira vez que me levaram a ver a volta, achei os ciclistas magrinhos e as bicicletas fininhas… uma decepção da qual não recuperei. Pela mesma altura vi a primeira tourada. Achei os matadores grandes, mesmo vistos da barreira, e os touros enormes… continuo a vê-los assim. Vi a vitória do Agostinho em l’Alpe d’Huez e vi-o gigante. E lá fui compondo a minha mitologia. A propósito de mitologia e em defesa diabólica do LA, não consta que seja argivo nem se conhecem de sua mãe furtivas pinocadas com deuses do olimpo. Parece ainda não se chamar ela Tétis nem o ter mergulhado no estige. Sem apelo, nem agravo, LA é um mortal ranhoso… mas… há mortais mais ranhosos que outros, outros que de todo não querem ser ranhosos, e alguns que chegam mesmo a querer ser deuses. Vencer 7 tours 7… só com poderes divinos. Se para isso teve que meter na veia, mamar na lua cheia e meter o sol no cu - mesmo que isso lhe queimasse um tomate -, ele aceitou… 7 tours 7.

Pessoalmente LA sempre me pareceu grande… e até lhe admiro a coragem de ter querido ser deus. Queimou as asas e saltam-lhe às canelas rafeiros moralistas (...).
 
Comentário a A Causa Foi Modificada, a 24 de Janeiro de 2013 às 20:20

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

A denúncia dos actos vergonhosos, a previsão do crime, o apontar do dedo, a profecia da queda, a identificação da mancha, a lavagem do pecado, a transparência do governo: infelizmente, ontem, hoje e sempre, a política é espaço privilegiado para os malucos, os fanáticos e os sacerdotes.

«Words, words, words»
 William Shakespeare, Hamlet (act. 2, c. 2).
 
 
Ia escrever aqui hoje sobre o magnífico livro de Primo Levi, O Sistema Periódico, mas adio por pouco tempo esse post, na medida em que poderão ter surgido alquímicas dúvidas nas mentes menos adestradas acerca das circunvoluções que parecem produzir a consciência humana (cf. Douglas Hofstadter e as obras completas de João Pedro Pais) obrigando-nos a clarificar que o blogue má despesa pública não nos supreende negativamente por ter um propósito obscuro; se há coisa que caracteriza a superficialidade de qualquer discurso é precisamente a necessidade obsessiva de se apelar à clareza, sobre tudo e todos, incluindo a das toalhas de mesa, e quase sempre, nesses casos, sem se praticar nos propósitos e resultados a clareza que se apregoa, o que aliás é típico da linguagem profética que caracteriza todos os denunciantes, incluindo eu próprio. Acontece que no meu caso, julgo que estão bastante claros os limites e projecto estético que acompanham a minha denúncia sistemática das fraudes artísticas, também não me parecendo que fiquem dúvidas nas mentes mais inocentes sobre os interesses particulares do autor destas denúncias - ocupar o lugar dos que me parece que fazem pior do que eu faria -, já no caso do má despesa pública, não se percebe ao que vêem. Como as massas exigem um esclarecimento, e a fim de não tornar demasiado insalubre esta incursão nos corredores húmidos e mal frequentados da teoria política, vou intercalar este micro-ensaio com exemplares italianos de uma espécie em vias de extinção: confiáveis e confiantes ministros da nação.
 
 
Stefania Prestigiacomo, Ministra do Ambiente, da Terra e do mar:
“Sono sconcertata da tutto. Del sogno berlusconiano in questo partito non c’è più traccia. Siamo circondati da piccoli gruppi di potere che passano le giornate a litigare”.
 
 
Por outra palavras, todos compreendemos que o má despesa pública pretende denunciar a má despesa pública, o que é um belo e saudável propósito purificador. O que nos parece é que ao diabolizar de uma forma sistemática a perspectiva pública dos consumos, não o fazendo da mesma forma para os consumos privados - já sei, é privado (ai) - com o estafado argumento da responsabilidade partilhada no uso dos dinheiros que «são de todos», e fruto de uma sacralização, na minha óptica bastante nefasta, das contribuições fiscais, os indivíduos que protagonizam esta orgia sensacionalista - e atenção que se há pessoas por mim odiadas sobre este planeta, são precisamente dois dos mais visados nesse blogue, a saber, o Professor Doutor Aníbal Cavaco Silva e o troglodita transmontano Isaltino Morais -, estão inconscientemente - pelo menos é o que se depreende do ridículo financiamento publicitário - a fundamentar a ideia de que a fiscalidade é um sacríficio incomensurável e desproporcional que obriga a vigilâncias especializadas para purificar o dinheiro da República, especialização que por sua vez permite a demissão da participação cívica nos abundantes organismos públicos (Juntas de Freguesia, Assembleias Municipais, Assembleia da República, para não falar de partidos políticos) onde se podem evitar os maus consumos (pois é, bebé) em vez de denunciá-los, e que (pois é, bébé) foram criados exactamente para (surpresa das surpresas) se controlar o exercício do governo e a utilização dos dinheiros públicos. Claro que esses organismos não são remunerados nem pela Ford, nem pela MEO-PT, e exigem chatices incomensuráveis e escrutínio público (pois é, bébé), ao contrário do má despesa pública - que pode gloriosamente manter o anonimato, por mim tão apreciado, mas por mim, atenção, que me estou a borrifar para a má despesa pública - o que me permite desde já estabelecer que o má despesa pública trabalha para a Ford e a MEO-PT (o que não tem mal nenhum, note-se), segundo um princípio aprendido com os sempre claros e profundos James Buchanan,  Robert D. Tollison e Gordon Tullock, muito justamente citados no péssimo relatório do FMI, (cujas ideias são discutidas neste excelente artigo não patrocinado pela Ford) obrigando desde já - e com profunda tristeza minha - a descartar qualquer hipotética novidade do má despesa pública num debate para um eventual resolução do problema político que nos preocupa a todos menos a mim. Atrever-me-ia a dizer que os membros do má despeswa pública contribuem com denodo e bastante energia para a confusão mental, sobre a mecânica da política, em que estamos muito justamente metidos.
 
Mara Carfagna: Ministra italiana da Igualdade de Oportunidades (isto não é uma brincadeira, podem confirmar no Google, se não estiverem crianças por perto). Em baixo, a mesma Mara Carfagna (já menos transparente mas num cenário real) e a sempre sóbria (com deslumbrante colar de pérolas) Stefania Prestigiacomo enfrentam uma moção de censura contra Berlusconi em Dezembro de 2010.
 
Mara Carfagna - Italian Houses of Parliament Discuss Vote Of Confidence
 

O facto de o má despesa pública recorrer à contumaz citação de agências internacionais como a Open Budget Survey (OBI) apenas confirma a nossa parolice intelectual como povo, sobretudo quando estamos a falar de instituições que apelam para o espectacular conceito de «transparência» (ui); é mais ou menos a mesma coisa que apelar à calma diante de um terrorista carregado de explosivos até aos dentes. Mas haverá algum velinho analfabeto do Distrito de Viseu que não saiba que o Estado gasta o dinheiro de acordo com a lógica interessada dos principais eleitos e respectivas clientelas? Será por acaso que países como a Itália, a Polónia e a Roménia surgem, para citar o má despesa pública, «atrás do nosso país». «O nosso país», Santíssima Virgem; veja-se desde logo a linguagem colectivista, totalmente desadequada ao paradigma  individualista e neo-clássico que aparentemente devia nortear a organização transparente numa economia de mercado. Além disso, alguém quer tentar adivinhar quem são os outros pecaminosos países no capítulo da transparência? Grécia, Espanha e Irlanda, provavelmente. E o que têm todos estes países em comum? Será o Papa? Por certo que não.

Aparece no dia de hoje, no citado blogue, esta extraordinária afirmação da supracitada agência internacional, uma afirmação, aliás, muito compreensivelmente deixada a gravitar no nevoeiro das sugestões qualitativas:

“Há, assim, várias recomendações que o OBI considera que deveriam ser implementadas, a baixo custo para o governo.» Sublinho desde já esta prece, baixo custo, perguntando em seguida como pretende garantir o OBI que a implementação das correções sobre consumos com altos custos, presentes no Orçamento de Estado, serão feitas a baixo custo, se a própria execução do Orçamento de Estado resulta num alto custo descontrolado, quando o próprio Ministério das Finanças e o Parlamento existem para garantir o controlo da execução Orçamental? Terá passado pela careca destas pessoas que os mesmos indivíduos que gastam mal o dinheiro, desviando o alto custo da execução para os seus bolsos, efectivarão novos contratos  informais de transferência de recursos públicos para enganar, controlar ou comprar os controladores estabelecidos a baixo custo, acabando provavelmente por meter ao bolso a mesma parte das verbas de alto custo mais as de baixo custo entretanto fornecidas para pagar a alguém que assegure o cumprimento do Santíssimo Sacramento da Transparência? Vejamos então a oração que os Senhores nos ensinaram.

  1. Publicação de uma versão do orçamento simplificada para cidadãos, bem como de um relatório semestral sobre a execução orçamental (substituição da merda da imprensa portuguesa por uma imprensa merdosamente amadora, amanhada à pressa pela administração pública capaz de transformar o mais relapso campino no mais zeloso vigilante do cumprimento semestral do Orçamento de Estado).
  2. O executivo deveria fazer um relatório anual das acções que tomou relativamente às recomendações feitas pelo Tribunal de Contas nas suas auditorias, sobretudo quando problemas sérios foram identificados. (sendo que a definição do conceito de problema sério, e a sua identificação num Relatório - risos homéricos - devem estar relacionados com um mecanismo a ser tecnicamente implementado junto dos respectivamente testículos e passarinhas dos membros do Governo, apertando com: força moderada quando o problema for a brincar; apertando com força considerável quando o problema for importante; apertando com força bruta e sinalizando com apitos estridentes quando o problema «for sério».
  3. Maior detalhe em relação à despesa, tanto por ministério como por programa, até dois anos depois do ano orçamentado; (com scanner exaustivo dos movimentos cerebrais dos Ministros e Secretários de Estado - sobretudo o burro do Relvas - para identificar o momento em que um deles pretender ir à casa de banho coçar a micose).
  4. Maior detalhe em relação à previsão de receita para os próximos anos; (integrando estimativas do Rui Santos e do Professor Xibanga, para além de um frasco de ENO anti-azia).
  5. Apresentação de cenários macroeconómicos alternativos : deveriam fundamentar cenários para o défice orçamental e medidas a tomar no caso do pior cenário se verificar; (incluindo a colaboração dos Bombeiros Voluntários da Moita do Ribatejo).
  6. Maior ligação entre políticas propostas pelo governo e mapas de despesa; (com assistência em viagem do banco Espírito Santo).
  7. Maior informação relativamente aos programas de despesa; (com fotografias de nu integral de todas as funcionárias do Tesouro ou autarquias que tocarem com as suas mãos em documentos de finanças públicas).
  8. Na Conta Geral do Estado, uma explicação da diferença entre cenários macroeconómicos inicialmente previstos e cenários reais. (com explicação pormenorizada das concepções espirituais dos funcionários públicos e um relatório do Professor Doutor João César das Neves sobre a correlação entre o crescimento exponencial da estupidez dos economistas, a realidade real das coisas serem o que são, e as aparições aos três pastorinhos, coitadinhos, na Cova da Iria, salvai-nos e salvai Portugal).

Claro que todos nós partilhamos destas preocupações, incluindo o meu sobrinho de 5 anos, que até apoia algumas delas, sobretudo as que podiam ser perfeitamente adaptadas aos problemas de gestão do fundo de maneio da sua sala no Infantário. Meu Deus: maior ligação entre as políticas do governo e mapas de despesa? Estas pessoas pensaram dois minutos nisto? Conhecem o mundo onde exercemos o nosso peso, descarregamos as nosssas misérias, sofremos como cães, até sermos ceifados brutalmente, quando algo de importante parecia finalmente despontar na nossa consciência? Não viverão estas pessoas na terra do Dumbo e do Bambi? O Tribunal de Contas? Qual? O que vigiou durante vinte anos as Parcerias Público-Roubado. Mas terão os meus leitores fixado a trapalhada analítica da medição do custo médio por aluno, aqui publicada recentemente numa Auditoria do Tribunal de Contas, com as suas estranhas excepções, os misteriosos casos irregulares, as bizarras opções aleatórias, as míticas transferências impossíveis de calcular? Não comento sequer o ponto 8 porque dá vontade de rir e as oscilações da caixa toráxica impedem-se de raciocionar com o mínimo de qualidade. Adianto apenas que só o ponto 8 daria para empregar pelo menos metade da população portuguesa em funções de controlo e transparência, e nesse sentido teríamos que contratar uma estrutura para controlar a estrutura que controla a estrutura que executa o Orçamento de Estado.
 

Maria Stella Gelmini - John Paul II Beatification Mass And Ceremony

Stefania Prestigiacomo e a Ministra da Educação, Maria Stella Gelmini chegando assim como era no princípio, agora e sempre, à cerimónia de beatificação de João Paulo II, em Maio de 2011, na cidade do Vaticano.
 
Como qualquer pessoa sabe, ou se não sabe é porque os economistas andam a dormir, o problema de medição de um custo, e sobretudo um custo de agência (porque implica não só a  racionalidade limitada de qualquer humano como diferenças de resistência à operação e execução de um interesse - do patrão, do eleitor, do gerente, do director, do cidadão, do ministro, do médico -, diferenças essas que dependem do grau de legitimidade, uma ciencia oculta e perigosa, como o prova a eleição dos sucessivos governos ao longo da existência das pessoas que constituem o má despesa pública) é dos problemas mais opacos e difíceis em Economia e Gestão. Foi precisamente para travar o esforço controleiro que um Professor de Filosofia Moral escocês inventou no século XVIII uma coisa chamada sistema de preços (pois é bébé). Mas os adeptos da transparência inventaram a pólvora. Controlar os controladores é quase tão caro como gastar mal o dinheiro (até porque é muito difícil saber o que é - do ponto de vista da economia agregada, sobretudo num contexto de integração das relações mundiais - dinheiro mal gasto; talvez o dinheiro aplicado ao tráfico de armas e pessoas, e claro, nos discos de B fachada e nos livros de José Luís Peixoto, mas tirando estes dois últimos exemplos, os únicos perfeitamente claros, a desgraça de uns é quase sempre o lucro de outros, como bem sabe o povo em geral e os alemães em particular). Foi por isto que pessoas como Milton Friedman quiseram experimentar a ideia de que talvez o governo fosse o problema, tentando expandir os mecanismos de mercado até ao máximo suportado pela vida social. Mas hoje não há desculpa, nem sequer mediante pagamentos da Ford e da MEO-PT, para ignorar as dificuldades em controlar uma organizaçaõ financiada por meio da fiscalidade, submetendo-a a regras de transparência (o que quer que isso seja), precisamente porque a opacidade e delegação de autoridade são absolutamente crítica para garantir o pagamento de impostos como foi no princípio, agora e sempre, amen.


Maria Stella Gelmini and Mara Carfagna - New Berlusconi Government Is Sworn In
 
 Giorgia Meloni, Maria Stella Gelmini, Mara Carfagna e Stefania Prestigiacomo na cerimónia de posse do novo governo de Berlusconi, em Maio de 2008.


Nem na economia de mercado, cujo sistema de preços exerce uma considerável pressão sobre o ajustamento dos contratos, a manipulação da informação sobre a formação dos preços, o segredo sobre os tipos de diversificação das carteiras de investimento e o conhecimento das taxas de lucro, deixam de ser elementos fundamentais do negócio, quando mais num sistema financiado por tributos (estão a atentar bem nesta palavra), onde a própria natureza da fiscalidade como um direito que nasceu para limitar e hierarquizar a sociedade (e não me obriguem a sacar da artilharia histórica) exerce efeitos disruptivos automáticos sobre a constituição e serve precisamente para manter de pé (atenção) o Estado que se quer transparente. Se os activistas querem contribuir para a resolução do problema, procurem relacionar o sistema de informação (a blogosfera ou outro) o seu financiamento (adeus à Ford e à MEO-PT) a produção de conhecimento (adeus à Escola e Universiadade), compressão e certificação desse conhecimento, com vista à seleção de informação relevante para se desenhar um processo de decisão, fundado na capacidade de computação da informação do maior número de indivíduos. Não me parece que restem dúvidas sobre a origem do problema: o controlo da informação e o processo de decisão.


A má despesa pública é apenas o efeito nefasto de uma completa desarticulação entre a representação política e o financiamento da autoridade que tem poder para consumir os bens que permitem assegurar serviços colectivos. Se nós nem sequer nos conseguimos entender sobre quais os serviços colectivos essenciais, de que adianta controlar a despesa? Mas os pagamentos MEO-PT e Ford vão continuar a cair, disso não haja dúvida. Está tudo bem. Cada um faz pela vida. A Ford, a MEO-PT, o má despesa pública, os funcionários do Estado e os clientes dos funcionários do Estado. O problema é que a capacidade de manipulação da informação (como se vê pela excelente gestão económica privada feito pelo más despesa pública assegurando o financiamento da Ford e da MEO-PT, quando neste blogue nem sequer nos pagam uma tosta mista numa tasca de Benfica) funda desde logo uma desigualdade estrutural, desiquilibrando quer a remuneração do trabalho, o que oferece um excelente exemplo para entender de que forma funciona a execução do Orçamento de Estado. Funcion da mesma maneira que o financiamento da blogosfera, de acordo com a diferente competência, ou se quiserem, honestidade, dos eleitos (veja-se o mercado dos bloguers), e de acordo com o trabalho de pressão dos grupos de interesse (ou grupos de consumo), o que no caso do Estado provoca fortes assimetrias no processo  de elaboração e aprovação de leis e organismos de controlo da «transparência» (olé). Também lá podiamos ir com o socialismo geométrico, marchando toda a gente ao som da corneta. A geometria dá muito trabalho? Dá. Quanto mais a transparência que pertence ao ramo da Óptica.

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Depois da homilia do Pedro Lomba hoje no Público, este pedaço de catequese jornalística no Guardian: o farisaísmo é sem dúvida uma doença de ilimitadas potencialidades.

Celebremos tanto a eterna complexidade como a faustosa diversidade do mundo: qual das três Jeniferes é a autora deste espectacularmente magnífico e incomparável livro?

 
Jenifere A. Lopez?
 
  
Jenifere L. Anderson?
 
 
Jenifere L. Aniston?



 
Mahogany traces the path of this wood through many hands, from source to sale: from the enslaved African woodcutters, including skilled “huntsmen” who located the elusive trees amidst dense rainforest, to the ship captains, merchants, and timber dealers who scrambled after the best logs, to the skilled cabinetmakers who crafted the wood, and with it the tastes and aspirations of their diverse clientele. As the trees became scarce, however, the search for new sources led to expanded slave labor, vicious competition, and intense international conflicts over this diminishing natural resource. When nineteenth-century American furniture makers turned to other materials, surviving mahogany objects were revalued as antiques evocative of the nation’s past.



 

Poderá existir uma má receita privada ou são sempre os mesmos a pagar a factura, ó filhos da puta: uma aproximação à salvação nacional mas de um ponto de vista lógico.

1.
Um gajo de quem eu nunca tinha ouvido falar, baptizado em Cristo com o santo nome de Alexandre Patrício Gouveia (provável descendente comum dos antepassados da Teresa Patrício Gouveia, sendo esta, por sua vez, conjuntural esposa do imortal Alexandre O'neil, famoso autor do por mim adaptado verso: à beta lunar há ir e nunca mais voltar) anda a passear-se por tudo quanto é canal televisivo sem que se entenda qual a razão do périplo. Sabemos apenas que a nota pedal da sonata com que tem presenteado os telespectadores consiste na famosa declaração: «o Estado é muito caro para a qualidade dos serviços que presta». Até aqui, tudo bem. Mas isto é como dizer: as bibliotecas das Universidades portuguesas são uma merda se tivermos em conta a estrutura salarial dos professores das ditas Universidades, ou seja, se me perguntarem o que penso da estrutura da despesa do ensino superior, a minha crítica vem armada até aos dentes com cálculos sobre o custo de oportunidade da qualidade docente, o que reflecte pelo menos a transparência deste tipo de crítica, tanto dos objectivos  como dos fundamentos, propondo-se implicitamente uma correção do problema (reduzir os salários dos professores transferindo esse valor para a aquisição de bons livros) com um ponto de vista claro, a partir de uma posição eventualmente interessada mas claramente falsificável, por implicar uma sugestão, baseada numa previsão de causalidade (qualidade dos livros, tamanho das bibliotecas = sucesso dos alunos) que pode ser estatisticamente testada. Claro que podemos discutir se o sucesso é garantir uma certificação do saber, mas aí meus caros leitores, a redução da despesa será o menor dos nossos problemas. Com toda a modéstia que me tem assistido, julgo que mantendo o funcionamento da República nesta esclerosada base constitucional, qualquer crítica da despesa pública devia pelo menos basear-se em pressupostos claros com os respectivos custos de oportunidade.


2.
Não é preciso relembrar que neste blogue se defende o assalto armado às principais instituições públicas, incluindo a RTP, mas convém no entanto relembrar que 99,9% da crítica política ao desempenho público mais não é do que juízo político injectado com os instrumentos do contabilista. Existe um problema nas ciências da contabilidade? Não. Mas que eu saiba é muito raro vermos um contabilista a dirigir uma multinacional ou qualquer outra empresa, e por isso, não vejo onde estão as vantagens dos conhecimentos de contabilidade para estimar e solucionar problemas de desempenho económico da República. Se os cursos de Economia e Gestão continuam a ser a base de recrutamento intelectual do grande capital - emergiu agora por breves segundos o Jerónimo de Sousa que há em mim - não vejo porque razão não havemos de aplicar esses mesmos métodos ao governo da República - pronto, já está tudo bem outra vez.

 
3.
Antes de mais, e faço desde já penitência na cinza como reparação desta minha ignorância, é supreendente que nunca me tenha deparado nos ditos debates e sessões jornalísticas com informações estatísticamente testadas sobre a correlação entre a redução da despesa pública e o aumento dos lucros das empresas privadas, pelo que não entendo bem qual o argumento da redução geral da despesa, e julgo que este aspecto particular tem sido sublinhado por algumas pessoas de bem, que no entanto não se conseguem fazer ouvir no meio da gritaria. Que existem operações financeiras e consumos, totalmente absurdos, para não dizer mafiosos, no sector público é um dado tão claro como o manto da Virgem, mas ainda ninguém provou consistentemente que exista uma correlação posisitva sobre a performance da economia agregada e a diminuição do consumo público, consoante a magnitude dos gastos do Estado seja rerduzida por uma transferência da despesa pública para a despesa privada, até porque separar um consumidor público de um consumidor privado individual é o mesmo que separar o meio dia das seis da tarde. Não será preciso lembrar que o significado da poupança é precisamente um dos temas fracturantes da economia - experimentem inserir no Google a expressão hayek the paradox of saving e contemplem depois a rebaldaria epistemológica - e que o apelo para o rigor técnico da economia neste particular, é o mesmo que procurar solucionar um conflito sobre a interpretação de um acidente rodoviário apelando apenas para o código da estrada. Por vezes, deparamo-nos com o conceito de neo-liberalismo mas conhecendo moderadamente uma imortal obra de Friedman, já aqui citada e disponiblizada, A Theory of the Consumption Function, em nenhuma das páginas vi escrita qualquer das parvoíces que se podem ouvir a tolos como Alexandre Patrício Gouveia, Vítor Gaspar ou António José Seguro, só para citar três dos tolos mais carismáticos.


4.
Seria curioso saber para onde vai a dita má despesa pública, procurando saber se a má despesa pública se transforma numa péssima receita privada, ou se o dinheiro desperdiçado (um conceito espectacular quando aplicado ao consumo) pelos Orçamentos de Estado e pelas conspurcadas mãos dos funcionários públicos não estará todo escondido debaixo do colchão de uma velha em algum monte isolado da serra algarvia. Eu diria que para saber se a despesa é má ou boa teríamos de medir alterações no que os economistas chamam custos de contexto, comparando o desempenho monetário das receitas resultantes dos dois tipos de despesa, e medindo as diferentes externalidades do consumo privado e da despesa pública. Rapidamente chegaríamos a conclusões mercantilistas, com campanhas ridículas do género «o que é nacional é bom». O tempo, como todos sabem, é o mais difícil problema filosófico, e por isso uma tremenda complicação em economia, sobretudo quando se pretendem separar temporalmente tipos de consumo e medir os impactos num mundo que mistura impiedosamente os impactos dos diferentes tipos de consumo, e nem é preciso recorrer ao lamaçal teórica da velocidade de circulação. Convém também relembrar que na própria raiz da ciência económica está uma confusão entre o significado do custo  a sua alteração com a passagem do tempo, e todas as discussões sobre despesa pública são quase sempre uma espécie de fotografia inicial de um salto para a piscina, em que ninguém está preocupado em avaliar a totalidade do percurso do salto, incluindo os resultados finais, e muito menos a hipotética magnífica pirueta encarpada do saltador, uma vez que a gritaria sobre a moralidade do risco implícito no salto e a admoestação sobre o facto de alguém se ir estatelar na piscina, ocupa todo o espaço disponível.


5.
Depois há por vezes um extraordinário argumento: não há dinheiro. Sobre este tema, por razões de pudor intelectual, salto em silêncio deixando uma sugestão bibliográfica clássica: Capital in the American Economy: Its Formation and Financing de Simon Kuznets,  assistido (ui) pela Elizabeth Jenks e publicado em 1961 pela Princeton University Press, acessível ao público no sempre publicamente gratuito e espectacularmente disponível site do National Bureau of Economic Research, uma instituição onde Milton Friedman, curiosamente, iniciou a sua carreira, e onde se pode também aprender qualquer coisa sobre a vida no excelente Winning the War: Poverty from the Great Society to the Great Recession,  onde os autores concluem que a economia pública nos E.U.A. reduziu a pobreza em 26,4% desde 1960 até 2010, sendo que a partir de 1980 (e claro que os autores estão a pensar no cowboy republicano) a redução foi apenas de 8,5 (olé).


6.
É extraordinariamente relevante da confusão intelectual em que labora o debate público nas democracias ocidentais modernas, que a cavalgada épica sobre os cavalares e alados conceitos de eficiência privada e despesa pública resulte num abandono à nascença do único debate realmente interessante - como podemos decidir colectivamente, e a partir de que escala, num mundo com muito mais rápidos e potentes instrumentos de comunicação -, o que tem levado à negligência do que neste caso, devo conceder, se prende inteiramente com a natureza constitucional da nossa identidiade como cidadãos (amen). Nós já não nos revemos no monolitismo do Estado-nação, independentemente de isso nos trazer mais ou menos benefícios materiais, ninguém tenha dúvidas, porque nem sequer consumimos maioritariamente produtos controlados pelo Estado; pelo que nem que o Estado fosse o Gandi, seria sempre acusado de desperdício e gordura. Como os economistas são os únicos que reunem o domínio das ferramentas estatísticas, o conhecimento sobre o apuramento dos dados macro-económicos, e a retórica da causalidade moderna, continuam a condicionar o debate em termos puramente contabilísticos porque não conseguem pensar economicamente um problema desta profundidade. Seria necessário ter lido Milton Friedman e Gary Becker, e com profundidade, o que ninguém em Portugal fez.
 
 
7.
O problema em debate decorre da falta de sentido político das novas comunidades que vão emergindo com fundamentos cada vez mais desligados da escola (e ainda bem), da Igreja (e ainda bem) da representação parlamentar (e ainda mal) e da própria cultura nacional (e ainda bem). Os benefícios do Estado português - que são bastantes - estão tão enraízados numa identidade administrativa estabilizada há três séculos e culturalmente consistente  há quase oito séculos que os custos desse mesmo Estado nos aparecem sempre como insuportáveis, tal como demonstra a tão acéfala e acrítica como popular denúncia do conjunto de bufos e filhos da puta que constituem o má despesa pública, numa orgia de posts em que não existe uma única ideia sobre a correção da despesa pública ou as diferentes consequências económicas das diferentes despesas denunciadas, uma coisa que daria trabalho, obrigaria a um compromisso político (ai a porca da política) e não permitiria ter 10.774 likes no Facebook e muito menos o vantajoso patrocínio da MEO-PT (ainda por cima ligeiramente disfarçado) essa espécie de gigante-referência da outrora má despesa pública, são do caralho as ironias desta vida. Na verdade, ninguém faz a mínima ideia de como solucionar esta merda, o que explica porque razão ninguém pretende trabalhar o problema ou investigar uma solução.
 

domingo, 20 de janeiro de 2013

Atenção: finalmente parece ter acontecido um livro importante no mundo ocidental.

Depois de duas tentativas confusas que se ficaram por um aquecimento inicial, Guns, Germs and Steel: The Fates of Human Societies (1997) e uma desistência a dois quilómetros da meta, Collapse: How Societies Choose to Fail or Succeed (2005), Jared Diamond candidata-se finalmente, com seriedade, a inscrever o seu nome na galeria imortal dos corredores de fundo. Em breve facultarei às massas o meu veredicto para que as massas possam dizer de sua justiça, em prol da minha boa relação com as massas.
 
 
Young people are not the private property of their parents: rather, they are free to move from dwelling to dwelling, finding love as they choose from a wide range of potential carers of different ages. Diamond is wholly convincing when he celebrates the emotionally secure, self-reliant, good-humoured and creative human beings produced by such collectivist methods of childcare. Why, he asks, don’t we in the West straightforwardly embrace these tried-and-tested methods of preserving the mental health of future generations?


 
We hear much anguished discussion about the accelerating disappearance of birds and frogs as our Coca-Cola civilisation spreads over the world, but much less attention has been paid to the disappearance of our languages. Looming over us today is the tragedy of the impending loss of most of our cultural heritage. Diamond is scathing in his criticism of those opinionated progressives – particularly English speakers – who see no reason why their own language should not be the only one left. He invites us to reverse roles here. While Shakespeare can be translated into Mandarin, we English speakers would regard it as a loss to humanity if Hamlet’s “To be or not to be” soliloquy were available only in Mandarin translation. In his usual authoritative way, Diamond concludes his discussion of language loss by surveying the many proven cognitive benefits of bilingualism and multilingualism, reminding us that for a whole community to be monolingual is in evolutionary terms unusual – a historically recent aberration.
 
Para a totalidade da crítica: aqui.

Memorandum II.

1) É perfeitamente permitido possuir a propriedade legal das obras completas do B fachada, por isso, está tudo bem.
 
2) É verdade que os argumentos críticos não foram tecnicamente fundamentados, nem no post mais recente, nem no mais antigo, o que seria tarefa elementar e perfeitamente possível, mas não gosto de perder tempo com fenómenos artísticos menores, apenas denuncio fraudes. Convém igualmente esclarecer os mais escandalizados que o post mais antigo foi produzido numa fase juvenil da minha fulgurante carreira, mas desde o dia em que embati no poste esquerdo da baliza de um pavilhão gimno-desportivo de Alverca, tudo se transformou de forma defintiva e exponencial, passando 1 dia do meu tempo psicológico a corresponder a 1 ano do tempo real.
 
3) É perfeitamente claro para alguém com um conhecimento, digamos, moderado de teoria musical (eu diria o 5 ou 6º ano do Conservatório nacional ou regional, mas com equivalência pedagógica), uma sensibilidade poética de nível médio, e dois ou três conceitos acertados sobre a evolução histórica desse fenómeno de massas, o pop-rock, que a música de B fachada é de uma pobreza intelectual  incompreensível e de uma ignorância técnica deprimente, quer harmónica, quer melódica (e o conceito de pobreza harmónica não tem nada que ver com a quantidade de acordes utilizados, juízo que eu nunca proferi, referi sim que aquela sequência de acordes podia ser tocada e composta por uma criança de 4 anos, ou por um orangotango, desde que devidamente instruído). Para além da indigência musical, o projecto B fachada é de um infelizmente ridículo excesso de pose, o que resulta numa concentração muito deselegante em aspectos ornamentais das artes do espectáculo (comportamento bastante típico em quem não tem muito para dizer musicalmente).

4) B fachada está para a música pop-rock produzida em Portugal nos últimos 50 anos como José Luís Peixoto está para a literatura produzida em Portugal nos últimos 50 anos: são fenómenos de massas ditados por um escasso conhecimento dos públicos acerca da linguagem utilizada e da tradição em que se inserem os referidos produtos artísticos.

5) Podemos considerar irrelevante estabelecer um nível de exigência mínimo na utilização de uma dada linguagem e tradição artística para produzir objectos artísticos, mas nesse caso, tudo é possível, desde a hipnose brasileira da música popular minhota até aos sonhos de menino das crianças da Pampilhosa da Serra. O americanismo balofo caracteriza-se pela importação massiva de tiques industriais e comerciais, absolutamente datados - e assimilados na sua forma mais irreflectida - o que resulta num afogamento da estrutura elementar do pensamento estético. Eu que aqui me tenho batido pelo avanço do raciocínio lógico nas humanidades, não posso deixar de lamentar a obnubilação da estética nos críticos, profissionais ou amadores, da música pop-rock (que substituem os referidos conceitos estéticos pelas revistas da moda, isto é, pelas opiniões dos burros dos jornalistas - aspecto já notado pelo Capitão Paddock) de onde decorre uma esclerose da faculdade do juízo em matéria artística pop-rock, que é, por si só, um sub-sistema da música em geral, o que já nos diz qualquer coisa sobre o que está em jogo. Se estamos a falar de folclore empresarial, então o mercado é a unidade de medida, e nesse particular, também B fachada tem sido esmagado em toda a linha. Continuo a preferir Lady Gaga.
 
 

sábado, 19 de janeiro de 2013

Estou constipado.

Ao ler o post do alf, lembrei-me que ele ja tinha falado da fraude B fachada e que o melhor mesmo é irem ler este livro.

Memorandum.

Ia agora mesmo demonstrar logicamente a consistência da minha deliberação sanitária sobre o micro-fenómeno B fachada mas julgo que este post trava com autoridade, e de forma definitiva, a hemorragia crítica que perigosamente ameaçava a segurança do nosso sistema estético, pelo que o tema não necessita de mais elaboração.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Ascensão e queda de Lance Armstrong: a literatura é isto mesmo.

This is my body and I can do whatever I want to it. I can push it, and study it, tweak it, listen to it. Everybody wants to know what I'm on. What am I on? I'm on my bike, busting my ass six hours a day. What are you on?
Lance Armstrong, em 2001, para quem quis ouvir, businessinsider.com


Este é o meu corpo e será entregue por vós.
Jesus Cristo, Lucas, 22:19-20.


When a hero’s shares are booming, the market rewards ever-greater price inflation. When those shares are tanking, short-sellers become the kings.
Ed Smith, Newstatesman


Ignoramus non podemus.
Lema latino que inventei agora mesmo para me incitar a mim próprio, e a todos vós, na construção de uma crítica pública mais feroz, abundantemente participada, elegante e logicamente fundamentada - no conteúdo e na forma-, e que é a nossa única arma consistente contra a barbárie.


Para lá da definição mais corrente de literatura, pelo menos entre as pessoas de bem, a saber, a capacidade de manter uma conversa para lá dos constrangimentos de espaço e tempo que limitam a condição humana, temos aqui reflectido, caros leitores e ilustres comentadores, sobre a erosão do conhecimento do ofício literário, isto é, da escassa necessidade - sentida tanto pelos leitores como pelos escritores - de domínio do conteúdo de livros fundamentais para a caracterização escrita da tragédia humana, para além, claro, dos ambiciosos cálculos aqui tentados para identificar as leis naturais que explicam as forças que possam ter impedido o Daniel Oliveira de chegar mais cedo à conclusão de que o pacifismo balofo, o igualitarismo fingido, a desresponsabilização vitimizadora e o amaneiramento urbano das soluções políticas geram coisas tão deprimentes como a «desfocagem do iluminismo» - na própria expressão do jornalista -, o obscurantismo conservador da ruralidade e da pobreza mental, o vegetarianismo circense ou a religiosidade artística de cariz paroquial. Como incansavelmente se tem aqui procurado demonstrar, os iluminadores (Emanuel «pimba na velha mentalidade» Kant, Adam Smith, Jean-Jacques Rosseau, só para citar três dos mais profícuos e iluminadores exemplos) são os santos da razão -  potentíssimos candeeiros, fulminadores da escuridão, incansáveis propulsores de luz -, santos da razão, repito, e não da natureza humana, erro cometido tanto pelo Daniel Oliveira como pelo Tolan, e apesar dos delírios da escola de Frankfurt (pessoas justamente assustadas com as potencialidades mecânicas do terror Nazi) não me parece que o regresso ao obscurantismo relativista, ou o progresso em direcção à metafísica do amor pelos animais acrescentem uma solução ao problema do nosso destino, até porque convém recordar que nós também somos animais e matamos em diversas situações político-legais, tanto animais-humanos como humanos-animais, distinções pouco rigorosas, e que não nos ajudam muito, pelo que continuo a não perceber onde está a polémica, pelo menos para pessoas respeitáveis que acreditam nas instituições democráticas: o juiz decidiu, está decidido. Se não acreditam nas instituições democráticas, então teremos que refazer tudo do princípio, estando eu totalmente disponível para ajudar, não me parecendo, no entanto, e como já se demonstrou à saciedade neste blogue, um bom princípio começar pelo irrelevante caso do cão irrelevante. Acho mais útil cavalgar o famosíssimo lema de Dylan Thomas (deprimentemente traduzido num horripilante título de Lobo Antunes): Do not go gentle into that good night./Rage, rage against the dying of the light.




Na verdade, o motor desse hino ao rugido contra a escuridão (em todos os sentidos que podem ter todas as formas de limitação e cegueira, e tendo em mente o positivo da negação da vida - sendo a negação igual ao medo perante a vontade de infinito, e sendo o infinito o outro nome para a liberdade) há-de ser sempre a misteriosa decisão que temos enjaulado conceptualmente (na falta de melhor caçador holístico) na expressão «vontade»; eis-nos, por isso, chegados por caminhos tortuosos mas fascinantes ao coração da literatura. Moby-Dick foi erigido precisamente a partir de uma pergunta, que repercutia sem descanso na cabeça do jovem Herman Melville, ou seja, «é possível a tragédia contemporânea depois de William Shakespeare?» O homem fechou-se no sotão da casa materna, nas montanhas da Virgínia (isto se não me engano: agora os correctores de erros ortográficos irrelevantes que vão verificar isto, se faz favor) rodeado das bondosas e sempre ternurentas irmãs, e esgalhou uma tentativa de resposta com toda a fúria rabujadora que detinha naquele momento.


Quanto a nós, o que podemos fazer? Por agora, recomendo que contemplemos a extraordinária história de Lance Armstrong. O inteligente e nunca devidamente elogiado Ed Smith diz com toda a clareza que para lá da superfície, a história de Armstrong é sobre o poder das celebridades e a cumplicidade dos média. Eu diria que é sobre a natureza da verdade e os fundamentos da traição, tal como o Hamlet, de Shakespeare. Ora aí está, precisamente uma das razões de ser deste blogue, o que só constituirá novidade para os mais distraídos: pensar sobre a natureza da verdade, assunto que tem perdido adeptos à medida que o século XX foi baixando, paradoxalmente, o custo unitário da torradeira e da máquina de lavar. A tragédia de Armstrong explica também a minha insistência junto de figuras públicas que, cada uma à sua maneira, desempenham o papel de campeões do elogio fácil e do silenciamento da crítica impiedosa, contribuindo para erigir este mecanismo trágico nas suas várias manifestações patológicas. Seria demasiado fácil fazer agora aqui uma acusação às grandes empresas, incluindo as do jornalismo, lançando um anátema sobre o consumismo, com uma denúncia fundada nos princípios caritativos da confiança amorosa, do rigor pelas regras do desporto e do respeito pelo próximo, tarefas que deixo para os irmãos em Cristo,  quer a Nike, quer os comunistas de todo o mundo. Além do mais, a verdade, em todos os tempos, não tem produzido caridade ou confiança gerais, mas carrascos e vítimas: não é agradável mas é a verdade.


O meu contacto com Armstrong foi desde o início pautado pela irritação, o que confirma a excelência das minhas análises da carácter, bem como a inveja contumaz, ressentimento virtuoso e fertilidade biliosa que acumulam reprocidades incomparáveis na estrutura da minha personalidade. Sempre que existe um esvaziamento do drama trágico competitivo no desporto, para se engrossar a tragédia dramática dos desportistas perante o cumprimento ou não cumpriemento das regras, estamos apenas a anunciar a morte lenta da competição profissional e por isso do próprio fundamento cultural e filosófico do jogo-pago, minando uma das últimas manifestações religiosas da sociedade ocidental - o desporto de alta competição -, razão pela qual longe de virmos aqui chorar as habituais lágrimas de crocodilo pela existência da mentira desportiva, vimos antes sovar sem misericórdia os burros dos jornalistas, que são, com o triunfo da sua profissão, os primeiros a contribuir para a queda do desporto, fazendo sistematicamente uma apologia dos vencedores e não da competição, e permanecendo totalmente incapazes de perceber o que está em jogo no caso de Lance Armstrong, agora sim, finalmente um ídolo imortal na minha selecta galeria.
 

Lance Armstrong said in 2010: 'As long as I live, I will deny taking performance-enhancing drugs'

 
O estilo de Armstrong foi polémico desde a primeira hora, confirmando-se a todo o momento na animosidade dos comentadores desportivos, jornalistas e até colegas de profissão, perante a sua arrogância competitiva, escorada numa imbatível capacidade de sofrimento quando de boca entreaberta, e sem erguer o corpo do selim, serpenteava como uma maldição nos grandes templos montanhosos do ciclismo mundial. A mais deprimente confirmação do mecanismo trágico é que a desconfiança foi sendo substituída por uma aclamção consensual, fundada na sucessão de vitórias e não numa revisão crítica do seu estilo. O cada vez mais estrondoso aplauso que o rodeava não se baseava num apuramento estatístico mais elaborado, ou pelo menos corrigido, da credibilidade dos seus resultados atléticos, mas na destruição produzida pelo efeitos finais da luta,  a chamada verdade dos vencedores, sem que à sua volta fosse permitido a um qualquer indivíduo colocar dúvidas sobre as próprias condições do jogo, o que soa demasiado semelhante com a encruzilhada política em que nos encontramos perdidos para que se possam negar as vantagens pastorais desta história. Como qualquer um de nós, Armstrong perseguiu sem dó nem piedade a meta onde colocou para si o fundamento da sua identidade como vencedor, e os sinais da sua queda apenas confirmam que continua a querer vencer, procurando sustentar uma imagem cada vez mais acossada pelas confissões sucessivas, facultadas aos jornalistas por antigos colaboradores ou companheiros de equipa.


Como qualquer herói prestigiado, a sua força está baseada numa simplificação das nossas mais profundas qualidades e defeitos, e por isso, o ataque cerrado contra os antigos companheiros, que na sua queda, Armstrong vai mantendo bem vivo, demonstra a decisão trágica de se manter fiel à sua escolha: vencer. Também não vamos, à maneira triunfalista do jornalismo americano, procurar culpados na multidão acéfala, que movendo-se nos seus tentáculos de monstro insaciável, se mostra sempre cada vez mais ávida de heróis, pois quanto mais elevado é o prestígio do vencedor, mais implacável é o efeito devorador da tragédia, e mais reparador parece ser o sacríficio da vítima em queda: Armstrong escolheu perseguir a baleia branca e vai fazê-lo até morte, arrastando consigo para o fundo do oceano o mundo inteiro, se for preciso. O que aqui importa é verificar como a movimentação monstruosa do mar, nas suas ondas incontroláveis, sucendendo-se à calma apaziguadora das marés tranquilas, parece responder a um artifício intencional sobre-humano, razão pela qual os gregos viam no mar o refúgio dos deuses mais poderosos. Mas é preciso resistir a esta derrota da razão. O Estado que se ergueu com a força mecânica do racionalismo procurou ser o monstro que finalmente está no mar com naturalidade, dominando as alterações do cenário, com a sua constituição também formada da monstruosa ligação de forças entre os vários elementos. Se é verdade que esse Estado se afundou com as suas monstruosidades, o caso de Armstrong vem apenas lembrar que como Coriolanus, o velho general romano traído pela sua cidade, estamos outra vez muito perto de soçobrar na luta contra a monstruosidade do incompreensível - e quase sempre incitados pelos que mais nos amam ou dizem amar-nos.  Parece vir longe o dia em que finalmente acedemos ao controlo das nossas intenções quando movidas pelas expectativas dos outros.